“Para ser feliz, não tenha esperanças.”
Carlos Legal
Na cultura Sufi há diversas histórias deliciosas sobre um personagem conhecido por Nasrudin, um sábio do povo, aparentemente tolo, que provocava as pessoas à sabedoria com um espirituoso bom humor. Diz-se que numa delas, Nasrudin caminhava pelo mercado central da cidade, quando subiu numa pedra e começou a falar com as pessoas:
“- Ó povo deste lugar, querem prosperidade sem esforço, saúde sem disciplina e felicidade sem consciência?”
E logo, as pessoas juntaram-se em volta do sábio e gritavam em coro:
“- Queremos, queremos, queremos!”
E então Nasrudin respondeu:
“- Ah! Obrigado, era só para saber. Mas podem ficar tranquilas, pois contarei tudo a vocês caso algum dia descubra algo assim”.
Sempre que sou convidado a pensar ou escrever sobre felicidade, essa parábola ressurge em minha mente e, de certa forma, me ajuda a entender que raras coisas na vida podem vir por sorte ou graça, enquanto outras nos exigem movimento e trabalho. Penso que a felicidade se enquadra nessa segunda categoria. E esse é um debate antigo, especialmente dentro da filosofia, tanto ocidental quanto oriental.
Para alguns pensadores gregos mais antigos, felicidade seria algo que acontece conosco e não teríamos controle sobre isso. Dependeríamos dos favores dos deuses para chegarmos à felicidade. Assim, tudo o que supostamente contribua para nossa sorte de cair nas graças dos deuses, pode ser uma iniciativa válida, desde vestir-se de branco, pular sete ondas no mar e comer lentilha na ceia de Reveillon, até fazer uma promessa para alcançar uma graça que o deixará feliz.
Por outro lado, outros pensadores afirmaram que a verdadeira felicidade viria somente por meio da razão e da vida virtuosa. Para o filosofo estóico Epicteto, felicidade e realização pessoal são consequências naturais de atitudes corretas, onde o compromisso com o progresso é mais importante que a busca da perfeição. Sua noção de uma boa vida não é seguir uma lista de preceitos, mas levar nossas ações e desejos a se harmonizarem. A questão não é agir bem para conquistar os favores dos deuses ou a admiração dos outros, mas adquirir serenidade interior e consequentemente, uma liberdade pessoal duradoura. Querer mais do que é possível conseguir, assim como ser negligente com seu plano de vida, pode ser fonte de intranqüilidade, frustração e infelicidade. A receita para uma boa vida, segundo Epicteto, concentra-se em três temas principais: dominar os desejos, desempenhar as obrigações e aprender a pensar com clareza sobre si mesmo e seu relacionamento com os outros.
O filosofo francês André Comte-Sponville, escreveu em seu livro “Felicidade Desesperadamente” sobre dois caminhos para a felicidade. O primeiro, e mais comum, é quando desejamos algo que não depende de nós, quando contamos com algum acontecimento ou alguém que faça acontecer o que desejamos. Este é o caminho da esperança, do ato de esperar e frequentemente gera mais frustrações e decepções do que realização. O segundo caminho está em desejar aquilo que depende de nós, começando em querer e amar o que se tem. Satisfação pelo que se tem é essencial para a felicidade, pois não devemos perder de vista que o que vivemos no presente, em grande parte, deve-se a nossas escolhas e decisões do passado. Com isso, podemos mudar nosso futuro agindo bem agora. Para Sponville, este é o caminho da força de vontade e do contentamento.
Matthieu Ricard, autor de “Felicidade: a prática do bem estar”, deixou sua promissora carreira como cientista para tornar-se monge, fotógrafo e escritor. Suas ideias e reflexões baseadas no conhecimento budista visam nos ajudar a sair de algumas armadilhas do senso comum. Entre elas, de que felicidade e prazer são a mesma coisa. Para Ricard, prazer é uma circunstância submetida ao tempo, a coisas e lugares e, portanto, são efêmeras. É comum ouvir de mulheres “tudo por um bolo de chocolate, eu ficaria tão feliz”. Para qualquer pessoa, a primeira fatia de um bolo de chocolate é uma delícia; a segunda nem tanto; a terceira, talvez, nos deixaria enjoados. O prazer é temporário, é consumido, na medida em que temos a experiência. E isso vale para qualquer coisa, desde a compra de um carro novo até fazer sexo. Prazer e felicidade são coisas bem diferentes. Um ato prazeroso gera uma felicidade transitória, mas não a sustenta.
Para o budismo, felicidade tem mais a ver com um estado de bem-estar, um sentimento profundo de serenidade e realização, um estado que sustenta nossos estados emocionais e, portanto, mais duradouro. Nessa perspectiva, é possível afirmar que podemos sentir e manter um estado de bem estar, mesmo quando estamos tristes ou enfrentamos uma adversidade. A felicidade é um estado profundo do Ser, que independe dos acontecimentos favoráveis ou desfavoráveis. Se observarmos uma tempestade em alto mar, o fundo do mar não é afetado pela turbulência da superfície. Um elétron possui a carga negativa orbitando em volta do núcleo, enquanto neste, habitam apenas as cargas positivas ou neutras.
Meditação é uma prática que nos ajuda a cultivar esse estado, a construir profundidade na vida, a distinguir o superficial e efêmero do relevante e essencial. Aprender a manter em nosso centro um estado de serenidade, força, liberdade interior, confiança e positividade ajuda a construir bem-estar e uma felicidade independente das circunstâncias.
Se nos apoiarmos em nossa própria experiência, é fácil percebermos quais são os estados internos que nos afastam e aqueles que nos aproximam da felicidade. Raiva, inveja, ódio, arrogância, desconfiança e ganância nos afastam do bem-estar, porque não deixam uma boa sensação depois que os experimentamos, além de gerar impactos negativos para a felicidade dos outros. Por outro lado, ações de generosidade, confiança, compaixão e amizade deixam uma sensação muito agradável, tanto para a pessoa quanto para os outros.
“- Olha como o Fulano me irrita” ou “- Apesar desse comportamento repulsivo, aprecio como Fulano é cuidadoso com seu trabalho”. Podemos escolher levar a vida sendo vítimas das circunstâncias ou protagonizar os acontecimentos, exercitando nosso poder de escolha.
Outra forma de ver é pensar que cada um de nós tem duas vidas. Uma externa, objetiva e material e outra interna, subjetiva, espiritual. Nossa vida externa está associada aos papéis que exercemos no cotidiano. Eu, por exemplo, sou pai, marido, profissional, amigo, filho, irmão. Cada papel tem seus deveres, suas exigências. Também podemos nos submeter a certa pressão para sermos excelentes em cada um desses papéis, tanto as pressões procedentes das pessoas com quem nos relacionamos, quanto as pressões internas que impomos a nós mesmos. Mas a experiência confirma que quanto mais expectativas alimentarmos com acontecimentos e pessoas, quanto mais meu bem estar e realização dependerem da aprovação dos outros, menor será minha felicidade.
Por outro lado, a vida interna envolve a relação que temos com nosso íntimo, com o como nos relacionamos com nossas emoções, pensamentos, crenças, valores e, sobretudo, como nos posicionamos diante das experiências da vida. Acredito que a qualidade da vida interna viabiliza a qualidade da vida externa. Entendo que a felicidade é viável por meio de uma vida integra e coerente. O equilíbrio na vida envolve priorizar o que realmente é importante, perseguir nossos objetivos com foco e serenidade, ser uma pessoa suave, leve. É possível lutar pela promoção com respeito ao outro, exercitar a tolerância com as pessoas, fazer o que se deseja ou precisa ser feito, sem expectativas exageradas pelos resultados. A intranquilidade vinda dos exageros nos afasta da felicidade.
Que essas reflexões lhe ajudem a ser cada vez melhor. Felicidades!
Artigo publicado em 12/06/2017