Voltaire(1) acreditava que a ciência, a filosofia e o amor, por si só, não levariam a humanidade a experiências virtuosas, bem ao contrário, sem a atenção devida, produziriam tiranos, pessoas vaidosas ou iludidas. Na sua obra Cândido, ou o otimismo(2), publicada em 1759, Voltaire narra a história de um jovem que vive uma jornada trágica, marcada pela fome, por doenças, acidentes naturais e traições. Ainda imerso no caos social de sua época, o jovem Cândido completa essa jornada quando encontra um homem simples, velho e sábio. Desse encontro, permeado pelo saber filosófico, muito podemos depreender. Cândido entende, a partir de então, que a realização individual deve acontecer à revelia dos movimentos coletivos.
Distanciar-se da desordem social - refiro-me a uma Europa do século XVIII, em crise política, e permeada por guilhotinamentos arbitrários - era uma atitude de garantia da vida. Cultivar propósitos individuais, além de um certo nível de satisfação pessoal, retiraria as pessoas do caos instaurado naquele período. “Cultivar o seu jardim”, o conselho final do livro, é também sobre cuidarmos do que podemos de fato mudar.
A saga de Cândido se assemelha a inúmeras histórias de vida: jornadas exaustivas que parecem não ter fim porque uma experiência dramática é sucedida por outra de igual proporção. E, não raro, as histórias de vida são permeadas por adoecimentos, abandonos, negligências, abusos, decepções, entre outras experiências complexas da vida... E a mudança almejada, após longo sofrimento, só se inicia quando decidimos pausar o pacto com a desordem na qual estamos inseridos. Trata-se de uma obra ainda inspiradora.
Retirar-se de contextos estressores, literalmente ou com sublimação(3), para encontrarmos um ponto de ponderação em nossas vidas, cuidando do que de fato podemos mudar, agrega um potencial de geração de impacto positivo no contexto relacional, sem que essa seja a motivação primordial. Como passamos a nossa existência imersos em contextos relacionais - família, trabalho, amigos - cabe, cada vez mais, considerarmos essa variável sistêmica em tempos de um excesso de experiências potencialmente traumáticas.
O indivíduo, ao buscar a sua regulação, impacta positivamente todo um sistema. Quando o homem velho e sábio, equilibrado em sua vida, encontra Cândido, esse homem o transforma e o convida ao autocuidado. Voltaire, em alguma medida, entendeu a relevância da ação individual para o equilíbrio de contextos caóticos. Assim, o autocuidado, o olhar para o equilíbrio da saúde mental, deve ser cultivado como um valor coletivo, uma atitude política na transformação da ordem social.